sexta-feira, 19 de março de 2010

Puerícia perdida

Quisera eu saber onde recata-se a pureza da infância!

Dia ante dia apresenta-se a mim sem que sinta tal fenômeno. Em dado momento, não mais me reconheço ao mirar o espelho. Percebo então, em mim, olhares - por vezes distantes, outras lúgubres; desenhos que definem e detalham preocupações inegáveis, eternizadas na face; lábios que já minaram tanta singeleza e, hoje, apenas destemperanças, despropósitos. Sussurro algo - como que querendo impor à voz uma suavidade não convincente - e o que noto é amargura e frigidez. Ah, e ainda me sobram os pensamentos para serem vasculhados, mas também estes me foram violados - e tanto que não remontam nem de longe uma mente tempos atrás permeada por devaneios, quimeras. Antes, deparo-me, à contragosto, com um pensar irrigado por inquietude e sofrimento.

De tudo que fui, comparado a um resíduo que sou, por resistência própria conseguiu salvar-se do amargor apenas meu coração. Não está ileso, contudo resguarda em si provas do quanto fora feliz. E palpita ainda incrivelmente na mesma cadência, no mesmo compasso ordinário. Um filete apenas de lembranças queridas ainda mantém, em parte, sua vida - hoje apenas um vestígio de uma outra adoravelmente pueril.

Quisera eu pudesse voltar no tempo e permitir-me à felicidade que só se colhe de manhã. Entregaria-me às asas da liberdade de pensar, amar, traquinar; e estaria, enfim, eximida de todo um viver cativo em mim - que mais me conferira margens ao morrer que ao gozar.
SOUZA, Daniele.